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Educar é verbo coletivo: para que serve um professor?

Para que uma criança aprenda algo, basta que haja um olhar atento; mas para que ela seja ensinada, educada, é preciso toda uma aldeia.


Essa “aldeia”, tecida de mãos que cuidam, vozes que corrigem, olhos que enxergam, nos convida a repensar o papel do professor, que deixa de ser um simples carinha que transmite conteúdo, e torna-se o vivo nó de um entrelaçamento coletivo. O professor é aquele que acolhe inquietações, que traduz o mundo em linguagem compartilhada, que ensina a construir e a desconstruir — e, sobretudo, que reafirma que nenhum saber floresce no vácuo.


Quando um professor entra em sala, carrega consigo uma genealogia invisível: os que ensinaram antes, as famílias que confiam o aprender, as vozes da sociedade que pedem sentido. Ensinar é gesto de tempo — ponte entre ontem e amanhã. Mas esse elo se fragiliza. A educação segue proclamada prioridade nos discursos, enquanto professores somem da prática e do desejo profissional.


No Brasil, o “apagão de professores” já é diagnóstico: a FAPESP mostra a falta crescente de docentes, agravada pela desvalorização e pela baixa atratividade das licenciaturas. Entre 2010 e 2021, o número de concluintes caiu ano após ano. Globalmente, a UNESCO e a Teacher Task Force estimam déficit de 44 milhões de professores até 2030. E a evasão preocupa: entre 2015 e 2022, o abandono da carreira quase dobrou, revelando cansaço, solidão e desgaste.


Esse apagamento, local e global, mostra que nos afastamos da aldeia que educa. Hoje o professor atua em solitário, entre burocracias, baixos salários e expectativas irreais. Cada ausência docente é sintoma coletivo. Cada sala sem professor, um grito mudo da sociedade.

E, ao refletir sobre a pergunta que encabeça este texto, lembramos que a docência não nasceu como profissão, mas como missão, como transmissão ritual. Desde a Grécia e Roma, ensinar foi formar sujeitos para o mundo — ainda que para poucos. No Brasil, a trajetória da docência é entrelaçada à história do próprio país e de seus apagamentos.


Em “História da educação: de Confúcio a Paulo Freire” (Ed. Contexto 2021, 288 p.), vemos que os primeiros professores eram, em sua maioria, padres jesuítas, cujo papel era educar (ou colonizar) corpos e almas. As escolas estavam associadas às missões religiosas, sobretudo no Nordeste, onde a catequese e o ensino caminhavam lado a lado. O ensino não era um direito, mas um dispositivo de poder. O saber era escasso, vigiado e condicionado à obediência. Com o passar dos séculos, a profissão docente foi se feminilizando, não por acaso, junto com sua precarização.


Como argumentam Andréia Roma e Sibeli Borba em “Mulheres na Docência” (Ed. Leader, 2024, 269 p.), o magistério passou a ser visto como uma extensão natural do cuidado doméstico. Ser professora tornava-se, para muitas mulheres, a única via possível de inserção no mercado formal, ainda que com baixos salários e pouco reconhecimento.


Já na Primeira República, as reformas educacionais buscaram institucionalizar o ensino público, laico e gratuito. A imagem do professor passou a carregar certa aura de civilização, como mostra Luiz Antônio Cunha em “A Universidade Temporã” (Ed. Unesp, 2007, 310 p.), mas a estrutura seguia frágil: poucos formadores, poucos recursos, poucos acessos. A expansão do ensino no século XX e a promessa de universalização após a Constituição de 1988 criaram a expectativa de centralidade docente nas políticas públicas. No entanto, como denunciou Paulo Freire em “Educação como Prática da Liberdade” (Ed. Paz & Terra, 2019, 192 p.), prevaleceu a lógica da “educação bancária” — alunos como recipientes e professores como depositários de conteúdo, muitas vezes impostos de forma vertical e distante da realidade escolar.


Ainda hoje, carregamos na escola brasileira heranças coloniais e patriarcais: currículos herdados, tempos rígidos, pouca escuta. A história da docência no país é, assim, um constante tensionamento entre vocação e exploração, entre amor e abandono, entre o chamado para ensinar e a dificuldade de permanecer. É nesse cenário que volta a pergunta: para que serve um professor?


Se olharmos para eles hoje, vemos docentes com um olho na tela e outro na realidade — muitas vezes sem conseguir fechar nenhum dos dois. As tecnologias digitais impuseram uma nova gramática à educação: vídeos, plataformas, algoritmos, fluxos ininterruptos de informação. Se antes o problema era o acesso ao conhecimento, agora é o excesso, e com ele o desafio de filtrar, contextualizar, interpretar.


Na lógica da educação bancária, se o professor fosse apenas transmissor de conteúdo, já teria perdido sua função diante da avalanche tecnológica. Afinal, se tudo está na internet, para que serve um professor num mundo hiperconectado?


Mas basta pensar nos professores que marcaram a sua vida — ou a de quem está perto de você — para perceber que ensinar conteúdo quase nunca foi o mais importante.


Embora ainda pese sobre o professor a lógica da educação bancária e a desvalorização da profissão, o cenário atual mostra que ele deixou de ser o detentor exclusivo do saber para assumir múltiplos papéis: mediador, curador, às vezes até influenciador. E é justamente por isso que continua insubstituível. Sua função não é transmitir dados — isso já fazem cabos e algoritmos —, mas transformar informação em experiência, reflexão e vida.


A tecnologia pode abrir caminhos, mas é o professor quem ensina a escolher quais trilhas valem a pena. Nesse ponto, a docência deixa de ser tarefa individual e se afirma como prática coletiva, um ato que ultrapassa o conteúdo e se conecta ao próprio sentido de viver em sociedade. Se há resposta possível ao apagamento docente, ela passa pela reinvenção da educação como projeto coletivo e transformador. Ensinar é, antes de tudo, um ato político — não no sentido partidário, mas no profundo gesto de construir o comum. O professor é aquele que, ao ensinar, convoca o outro a existir com mais consciência, criticidade e cuidado.


Como argumentou Paulo Freire em “Pedagogia do Oprimido’ (Ed. Paz & Terra, 2019, 256 p.), “ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. Educar é, portanto, um processo de mão dupla: quem ensina também aprende; quem aprende, ensina. É nesse entrelaçamento que a escola, a universidade, a comunidade, se tornam espaços de diálogos, de escutas e de reinvenção do real. Para além de ensinar conteúdo, ao professor cabe possibilitar experiências de mundo.


Em tempos de crises ambientais, sociais e epistêmicas, a docência é uma das poucas formas ainda possíveis de cuidado com o futuro. Como diz Edgar Morin em “A Cabeça Bem-Feita” (Ed. Bertrand, 2000, 128 p.), precisamos formar para a complexidade, para o inacabamento, para a incerteza, e isso exige professores inteiros, valorizados, escutados.


A valorização docente não se faz apenas com aumento salarial, embora este seja urgente. Valorizar é confiar, é investir, é proteger. É garantir formação continuada, condições de trabalho, tempo para o estudo, redes de apoio. É lembrar, como bem aponta Bell Hooks em “Ensinando a Transgredir” (Ed. Martins Fontes, 2024. 270 p.), que a sala de aula é espaço de resistência e possibilidade, onde o amor e a liberdade também devem ser métodos.

Então, para que serve um professor?


Serve para lembrar que o conhecimento é sempre coletivo, que aprender é ato de escuta, e que ensinar é, no fundo, uma forma de amar o mundo, mesmo quando o mundo nos nega estrutura, nos impõe cansaço, nos tira o chão.


Num tempo em que tudo está acelerado, descartável e impessoal, o professor é um ponto de pausa. É quem diz: "vamos juntos". Quem pergunta quando ninguém responde. Quem insiste quando tudo silencia. Quem planta o que não verá florir.


Se o verbo “educar” está no coletivo, que ele se torne também prática política. Que possamos conjugar juntos o futuro: eu educo, tu aprendes, nós transformamos.


É nesse espírito coletivo que se organizam encontros como o Congresso Movimentos Docentes, que nos lembra que ninguém ensina ou aprende sozinho. Assim, convido você a se inscrever e participar desse evento gratuito e online, que acontecerá entre 14 e 17 de outubro de 2025, com palestras e aulas incríveis em linguagem clara, acessível e de qualidade transmitidas no canal Movimentos Docentes no YouTube, reunindo professores de todo o Brasil e do mundo pela partilha, colaboração e (trans)formação de professores.


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