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O Curupira e a Cúpula dos Homens

Belém, COP30. O céu riscado de hélices. Na copa do jequitibá, o Curupira ergueu a orelha.

Dizem que ele corre mais rápido que o som do trovão. Que seus pés virados confundem até os rastros do tempo. E que só aparece a quem tem coração limpo ou culpa pesada demais. É o Curupira, guardião antigo, de cabelos de fogo e olhos faiscantes. Morava nos confins da floresta, num lugar onde até os satélites se perdiam, e as árvores ainda cochichavam em tupinambá.


Mas neste ano, algo mudou.


Do alto do jequitibá, o Curupira espiava o céu tomado pelas aves de metal, escutava longe as nuvens de palavras que não choviam: “descarbonização”, “compensação”, “neutralidade climática”. Havia gente do mundo inteiro em Belém, na tal Cúpula do Clima. Era tanta fala, em tantos idiomas, que até as araras ficaram caladas por um instante. O povo da cidade usava crachá no pescoço para se identificar aos turistas e medo nos olhos por tanta gente e novidade. Gente que, entre uma reunião e outra, esqueciam-se de olhar para as árvores.

Curupira coçou sua cabeça flamejante.


— Falam da floresta como se fosse um contrato. Como se cada folha tivesse cláusula. Mas ninguém perguntou o que ela quer.


— Se esqueceram que toda decisão deixa pegada, farei lembrarem que que algumas apontam para trás.


Então resolveu agir.


Na mesma noite, convocou os professores. Não os dos livros grossos ou dos PowerPoints em inglês. Mas os mestres de maré: caiçaras, ribeirinhos, pajés, parteiras que ensinam pelo gesto, pelo olhar e pelo silêncio. Fez o convite voar e chegar como só ele sabe: numa aragem doce que sopra no ouvido, num peixe que salta sem motivo, numa criança que sonha com pegadas ao contrário.


Vieram todos, por terra, rio e sonho.


Na beira do igarapé velho, Curupira falou em linguagem que não se escreve. Mostrou imagens de árvores tombadas, bichos calados, crianças tossindo em aldeias sem sombra. Disse que a floresta sabia que a COP 30 viria. Que havia gente boa querendo ouvir. Mas era preciso fazer chegar à fala das matas de um jeito que os ouvidos urbanos compreendessem.


— Não basta gritar. Disse ele.


— Tem que contar, com beleza, com verdade. Tem que encantar os homens que se esqueceram como é ter raiz.


Assim começou o plano. Cada professor voltou ao seu território com uma missão.

As caiçaras criaram mapas de vento e sal, ensinando os caminhos do respeito entre manguezal e homem. Os ribeirinhos gravaram histórias em áudio, em barcos transformados em rádios comunitários flutuantes. Os mestres indígenas criaram grafismos vivos, que se projetavam nas paredes dos prédios e casas de Belém. Era como se a floresta desenhasse em tempo real.


E as crianças... ah, as crianças! Elas inventaram jogos de realidade aumentada onde cada escolha salvava ou perdia uma árvore.


Curupira observava tudo de longe. Às vezes aparecia num reflexo de vidro, noutras num apagão de energia, fazendo diplomatas suarem frio. Ele não queria palco. Queria efeito.


E teve.


Na última noite da Cúpula, antes dos acordos serem assinados, uma menina da ilha do Marajó subiu ao palco. Em vez de falar, soprou uma flauta feita de taquara. O som era simples, mas fez o auditório silenciar como nunca.


E quando a música cessou, um apagão atingiu a cidade. Por exatos sete minutos e treze segundos, Belém do Pará mergulhou na escuridão.

Foi quando o céu se acendeu.


Não com estrelas, mas com grafismos que dançavam nas nuvens, peixes, folhas, olhos, flechas, crianças. As imagens riscavam o ar como mensagens vivas. Era o recado do Curupira. Mas sem palavras: apenas espírito. Em símbolo e encantamento, a floresta falou.

Alguns cientistas chamaram de ilusão óptica. Outros, de hackeamento ambiental. Mas os mais antigos sabiam. Aquilo era aviso. De que a floresta tem olhos. E que, desta vez, ela está olhando de volta.


Depois daquela noite, algo mudou.


A COP 30 terminou com compromissos ousados, sim, mas também com um novo protocolo, informal e urgente, escrito não em papel, mas nos gestos: escutar os territórios vivos. Integrar saberes que não cabem em relatórios. Reconhecer que floresta em pé não é só carbono: é cultura, é memória, é resistência.


E dizem, nos corredores da ONU, que toda nova cúpula começa agora com uma lenda contada em voz baixa. Ninguém sabe quem começou, talvez um diplomata latino, talvez uma professora ribeirinha. A história de um ser de pés virados que confunde os gananciosos, protege os inocentes e sopra ideias nos ouvidos de quem ainda consegue escutar.


Porque o Curupira ensinou uma coisa: quem quer salvar o mundo precisa primeiro reaprender a escutá-lo.


E a floresta, enfim, está voltando a falar.


Mas e o Curupira? Bom, dizem que voltou para dentro da mata. Mas agora, de tempos em tempos, envia sinais: na maré que muda sem aviso, no aplicativo que trava do nada e na criança que pergunta:


E se a árvore fosse gente?"


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