O silêncio das balas: lições que a escola deixou de ensinar
- Everton Viesba

- 1 de nov.
- 4 min de leitura
A fila que passa na televisão e viraliza nas redes sociais não tem nome. Cada número anunciado é um eco que volta vazio: mais uma vida que não chegou a ser futuro. Muitos comemorando, outros em espanto. A banalidade da morte virou paisagem, estatística e manchete.
No Rio de Janeiro, uma megaoperação policial deixou mais de 100 mortos. É o maior número já registrado em uma ação desse tipo. A manchete veio, os corpos se enfileiraram no meio da comunidade, um gesto para lembrar o poder letal de uma sociedade que se cala. Nos dias seguintes, a vida seguiu. Algo semelhante aconteceu em Gaza, onde mais de cem pessoas foram mortas em um cessar-fogo mediado de longe, entre negociações diplomáticas e a poeira das ruínas, os tomadores de decisão jamais pisariam no meio da Faixa de Gaza ou do Complexo do Alemão. As duas notícias, separadas por continentes, espelham a mesma tragédia: a vida perdeu o valor narrativo. Morre-se tanto que a morte já não causa notícia, apenas repetições.
A educação, que sonhamos ser o grande projeto civilizatório, falha em explicar a raiz do tráfico e a lógica da desigualdade. Se ensina química, mas não se fala do pó que sustenta impérios e destrói famílias. Se ensina geografia, mas não se discute o território que aprisiona e a distribuição de espaço que valoriza os Jardins e amontoa as comunidades. Ensina-se ética, mas não se combate o racismo estrutural que determina quem vive e quem morre na frente de uma arma. Forma-se professores, mas não lhes dá ferramentas para entender o que se passa fora do portão da escola.
Quando uma pessoa da comunidade segura uma arma, não o faz apenas por escolha, mas também por falta delas. O faz por ausência. Falta o Estado, falta o trabalho, falta o pão, falta o abraço. Faltou a Educação. O tráfico surge em paralelo à noção de pertencimento. Ele ensina o que a escola não consegue: poder, reconhecimento e sobrevivência. É uma espécie de “currículo oculto” de uma sociedade que substituiu o verbo educar por punir.
Paulo Freire nos lembra que a educação libertadora é um ato de coragem — coragem de dizer o nome do mundo, de enfrentar as causas da opressão. Mas, em muitos casos, a escola fala de cidadania sem falar de miséria, pede disciplina a quem nunca teve perspectiva de futuro, e celebra o mérito de poucos como desculpa para o fracasso de muitos. A cada operação policial, a cada “efeito colateral”, a cada corpo caído, a lição que a escola deixou de ensinar é a de que toda morte é um fracasso coletivo.
Em 2019, a polícia encontrou 117 fuzis em um imóvel ligado ao assassinato de Marielle Franco. Nenhum tiro foi disparado, os alvos eram apenas suspeitos e a investigação pedia cautela. Em 2025, a mesma quantidade de armas foi apreendida, comunidades inteiras se apavoraram sob a violência e mais de cem vidas se perderam. Pobres, pretos e pardos.
O livro Dinâmicas do Mercado de Drogas Ilícitas no Brasil (Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, 2022) demonstra que o tráfico se instala onde o Estado é ausente e a economia, informal. Nasce como resposta à falta: de oportunidades, de renda, de políticas públicas. É uma pedagogia da sobrevivência em um país que oferece pouco além da morte como destino. Mas sua raiz verdadeira não está nas vielas, e sim nas avenidas largas do capital. O tráfico floresce nas comunidades, mas é nutrido pelos fluxos financeiros que circulam entre bancos, bolsas de valores e paraísos fiscais. A engrenagem da violência não se move pela pobreza, mas pelo lucro. O mesmo pó que adoece corpos na periferia impulsiona índices na economia global, em cifras que se misturam à especulação, à lavagem de dinheiro e ao consumo de luxo. A favela é o cenário visível da guerra, mas o comando real opera de terno e gravata, nas altas esferas de um mercado que transforma o vício em ativo e a morte em moeda.
Na mesma direção, Cabeça de Porco (Ed. Objetiva, 2005, p. 296 p.) mostra que o tráfico é, muitas vezes, o espelho invertido da escola: ele oferece pertencimento, liderança e remuneração, ainda que à custa da própria vida. Quando o jovem aprende, pela bala, que vale mais morto que educado, a escola já perdeu sua batalha simbólica. Mas o silêncio também é bala. O silêncio das salas de aula que evitam o tema, o silêncio das universidades que tratam a violência como objeto distante, o silêncio dos governos que transformam necropolítica em rotina administrativa. Cada omissão é um estilhaço. Cada ausência de diálogo é um disparo simbólico.
O governo do Rio de Janeiro preferiu bancar a chacina. Usa o fato como palco político, transforma o horror em discurso de autoridade e a morte em demonstração de poder. Enquanto isso, as elites seguem no pó branco, movendo o mesmo mercado que condenam publicamente. Os políticos, confortáveis em seus gabinetes, terceirizam responsabilidades e silenciam diante do sangue derramado. A polícia, também pobre, torna-se o braço visível de uma opressão que ela própria sofre. Homens e mulheres com baixos salários, submetidos a péssimas condições de trabalho, vivendo o risco diário da morte. São peças substituíveis da engrenagem que mantém a roda do tráfico e do lucro girando.
Essa semana, foram mais de cem mortos: alguns policiais, a maioria jovens rotulados como traficantes. E tudo segue. O terror choca, mas logo se acomoda. Afinal, pobre tem aos montes, e sempre haverá quem ocupe o espaço deixado pelos que caíram. É o ciclo perfeito da barbárie: o Estado finge que combate o mal, a sociedade finge que se comove, e a economia subterrânea segue produzindo dividendos.
No fundo, o que sustenta essa máquina não é o fuzil, mas o consenso social de que certas vidas valem menos. Quando a morte se torna rotina, a humanidade se perde em meio ao ruído dos tiros e ao silêncio das escolas. A educação, se ainda quiser ser remédio, precisará voltar a ensinar que cada corpo tombado é um livro não lido, uma história interrompida, uma aula que nunca aconteceu.
Porque nenhuma sociedade se ergue sobre o som das balas. Só sobre o poder da palavra.
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