Censura Não é Cura: Apple adia estreia de A Especialista e reabre discussões sobre violência e censura
- Raphael Rosalen
- 4 de out.
- 3 min de leitura
Atualizado: 8 de out.

Em setembro de 2025, a Apple TV+ tomou uma decisão incomum: adiou indefinidamente o lançamento da minissérie A Especialista, estrelada por Jessica Chastain, sem oferecer qualquer explicação clara. Segundo o New York Times, A Especialista é uma ficção levemente inspirada na história real de uma mulher que trabalha para antecipar possíveis atentados, rastreando a retórica violenta de grupos extremistas online. O curioso é que, apesar do tema urgente, a série parece evitar qualquer tipo de posicionamento político. Não menciona partidos, não cita eventos reais, não faz acusações diretas. Tudo parece ser tratado com máximo cuidado. E mesmo assim… sumiu. Não foi banida, nem cancelada. Apenas “pausada”. Em silêncio. Como se o mundo não estivesse pronto.
Por que uma empresa com o poder e o alcance da Apple hesitaria diante de uma obra que, segundo Mike Hale, o crítico de televisão do NY Times, é surpreendentemente anódina? A resposta mais imediata seria política. O adiamento aconteceu logo após o assassinato do ativista conservador norte-americano Charlie Kirk, num momento em que programas como o do Jimmy Kimmel também foram temporariamente suspensos. Em um país onde o conservadorismo vem pressionando estúdios, editoras e plataformas, talvez a Apple só tenha feito o cálculo do desgaste e preferido evitar polêmica.
Mas eu acho que tem mais coisa aí. A Apple é conhecida por seu controle de imagem. É uma instituição que, antes de tudo, pensa em como será percebida. E A Especialista, apesar de cuidadosa, lida com um assunto sensível e torna a performance de violência em um espetáculo televisivo. A série tenta transformar ódio em entretenimento, mesmo que com boas intenções. E talvez seja isso que incomode.
Esse medo não é novo. Já vimos esse filme antes. Nos anos 80, no Reino Unido, surgiu o pânico moral dos video nasties: uma onda de censura contra filmes de horror em VHS, acusados de corromper a juventude e incitar crimes. Muitas vezes, quem liderava esses protestos nem assistia aos filmes que criticava. Mas o medo falava mais alto que a lógica. Nos anos 90 e 2000, o pânico se voltou contra os videogames. Após o massacre na escola norte-americana Columbine, jogos como Doom e Grand Theft Auto (GTA) viraram vilões midiáticos. Pais, políticos e apresentadores de TV pediam censura. A ideia era sempre a mesma: proibir as imagens, como se elas fossem a raiz da violência.
Mas hoje, a situação é ainda mais complexa. A cultura visual não é só entretenimento. É estrutura de mundo. Nossas vidas acontecem em imagens: stories, reels, avatares, perfis. Cada selfie, cada registro, cada edição: tudo é construção de sentido e identidade. Vivemos em simulações. E o que antes era metáfora, agora é realidade. Na nossa atual sociedade digital, as imagens não apenas ilustram o mundo. Elas são o mundo.
Talvez por isso a Apple hesite e A Especialista não tenha sido adiada por ser radical demais, mas por ser real demais. Porque ela coloca em cena uma figura que não está tão distante do presente: o homem branco, ressentido, que transforma frustração em violência. E mostra que ele é moldado por algoritmos, fóruns e vídeos. Como tantos outros que já vimos.
Mas o problema não são as imagens. O problema é o que fazemos com elas. O problema é uma sociedade que terceiriza a responsabilidade para a ficção, em vez de encarar seus próprios colapsos. Uma sociedade que prefere censurar histórias a lidar com as narrativas que se formam em silêncio. Censurar nunca foi solução. Ao contrário: é nos gestos de apagar que muitas vezes se revela o pânico mais profundo. Porque o que está em jogo não é apenas o medo do que será visto. É o medo do que será sentido. Do que será reconhecido.
Vivemos num tempo em que precisamos reaprender a ver, a distinguir o que é simulado do que é vivido. E isso não se faz com filtros ou proibições. Se faz com presença, com diálogo, com coragem. O futuro não depende das imagens que apagamos, mas das histórias que escolhemos contar.
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