Machado de Assis, Graciliano Ramos, Ariano Suassuna, café, cana-de-açúcar e memes: alguns dos muitos retratos da soberania brasileira
- Everton Viesba

- 26 de jul.
- 6 min de leitura
Brasil. Uma terra que mistura barroco e brega, sertão e selva, o discurso da tecnocracia com a voz, às vezes rouca, das ruas. Um país que insiste em existir. Em resistir. Talvez essa teimosia que nos faz sorrir diante do caos seja o que melhor define a nossa soberania: a capacidade de sermos muitos em um só.
Machado de Assis, negro, um tanto gago, epiléptico e pobre, já dizia sem dizer, com aquela ironia fina que muitos confundem com timidez, que o Brasil nunca foi para amadores. Sua pena, que dançava entre as entrelinhas do Império, sabia que a verdadeira independência mora na consciência. E que a liberdade, antes de ser proclamada em praça pública, precisa ser praticada em voz baixa, dentro de casa, entre o feijão e o livro.
Décadas depois, Graciliano Ramos escreveu com faca e sangue. Um Brasil seco, desidratado de políticas públicas, rachado de esperança. Em Vidas Secas, não há independência possível sem água, sem comida, sem o mínimo que torne alguém humano. Graciliano nos lembra que a soberania de um povo se mede também pelo que ele come ou pelo que deixa de comer.
Já Ariano Suassuna, rindo da nossa cara com o coração cheio de afeto, pregava a ideia de uma soberania cultural. “O Brasil não precisa copiar ninguém, pois aqui se inventa de tudo”, dizia isso enquanto criava personagens que misturavam o erudito com o popular, o cordel com o teatro grego. Um país que faz do cavalo-do-cão um herói trágico e do Palhaço Romeu um filósofo popular.
Somos uma terra de riquezas tão abundantes quanto malcompreendidas, às vezes perdidas por desatenção, outras tantas por planos que nunca nos favoreceram. Mas seguimos. Nosso café, esse ouro perfumado, atravessou oceanos para manter acordada a nobreza europeia, enquanto aqui, alimentava os sonhos e calava as fadigas do povo. A cana, espremida nos engenhos e açoitada junto às costas de nossos ancestrais, hoje se transforma em cachaça, símbolo de festa, identidade e resistência. O Brasil que brinda com cachaça é o mesmo que sobreviveu à violência da escravidão, e que agora transforma dor em dignidade, suor em celebração.
E mesmo diante de tantas provações, temos o privilégio de morar num lugar onde a natureza parece ter sido desenhada em estado de graça. Dos encantos dos Lençóis Maranhenses à imponência da Chapada Diamantina, das águas que correm pelo Rio São Francisco às curvas sedutoras do Rio Negro — somos vastos, plurais, intensos e democráticos. Não somos apenas um país. Somos um continente inteiro dentro de um só nome: Brasil.
Essa natureza, que nos dá de comer, de respirar, de sonhar, é também um grito de alerta. Mesmo cansados, encontramos fôlego, mesmo feridos, não perdemos o brilho no olhar. Ainda temos a chama, o calor, o som do tambor que pulsa em nossas veias. E podemos dizer, com alegria que arrepia a pele: somos brasileiros.
Nosso Brasil é, antes de tudo, uma potência mundial afetiva. Nossa maior riqueza não se mede em cifras, mas em vozes, gestos, sabores, ritmos e ideias que brotam de cada canto deste território de contrastes. Um país cuja inteligência pulsa nas vielas e nas veredas, onde a cultura não nasce do capital, mas da paixão pela terra, pelo outro, pela memória. Aqui, o saber não é privilégio de cátedra, mas prática cotidiana: está na literatura que reinventa o mundo, na oralidade que atravessa gerações, nas mãos que plantam e nas bocas que cantam. Amamos esta terra não pelo que ela rende, mas pelo que ela representa, porque mesmo diante de todas as expropriações, o Brasil continua sendo um lugar onde se cria, se imagina e se acredita.
É como ler as obras de Guimarães Rosa e perceber que ele não escreveu sobre o sertão. Ele foi o sertão. Em Grande Sertão: Veredas (Ed. Companhia das Letras, 2019, 560 p.), construiu uma geografia de linguagem e alma, onde as veredas vão além de caminhos d’água, se tornam trilhas existenciais de um povo que resiste. Rosa fez da fala interiorana um monumento linguístico, e da vida dura dos jagunços uma epopeia de humanidade. Seu Brasil é aquele que transpira poeira, mas também poesia.
Enquanto país, somos insubmissos de natureza. Não abaixamos a cabeça, tal qual Lima Barreto, que com sua pena afiada, nos ofereceu um retrato implacável da desigualdade e do racismo estruturante que atravessam a sociedade brasileira. No livro Triste Fim de Policarpo Quaresma (Ed. Penguin-Companhia, 2011, 368 p.), desenhou a trágica jornada de um homem que acreditava no Brasil com uma fé quase ingênua, mas sua ingenuidade era, no fundo, um grito por um país mais justo, mais autêntico, mais nosso. Lima nos mostra que o amor ao Brasil também se faz de dor, e mais do que isso, que o patriotismo verdadeiro precisa ser crítico.
Foi no agreste de Rachel de Queiroz, que entendemos que o Brasil tem cheiro de terra molhada e força de mulher. O Quinze (Ed. José Olympio , 2016, 208 p.) eternizou a seca de 1915 no Ceará, mas também a tenacidade de uma gente que, mesmo com os ossos à mostra, não cede ao abandono. Rachel escreveu o Nordeste com mãos firmes, sem estereótipos ou romantismos baratos. E nos ensinou que, por trás de cada tragédia natural, há um drama social e uma cultura que insiste em florescer na aridez. Rachel nos mostrou a força da mulher brasileira.
Ah, a Bahia, Jorge Amado fez desse lindo Estado um universo literário. Seus personagens — Gabriela, Dona Flor, Pedro Bala, Tieta — são alegorias de um Brasil sensual, contraditório e profundamente humano. Ao mesmo tempo em que narrava festas, cheiros, sabores e amores, Jorge escancarava as injustiças, as disputas de poder, o coronelismo que ainda ronda o país. Com ele, a literatura virou uma festa popular onde política, religiosidade e candomblé dançam juntos. Eis o Brasil, Brasil.
E como não lembrar de Manoel de Barros, o poeta que mais representa a característica brasileira de ver valor nas coisas desimportantes? Seu Pantanal não era só paisagem, era estado de espírito. Ele nos ensinou a ver poesia em sapo, musgo, pedra, menino. Em versos que inventam o verbo com a mesma liberdade de quem molha os pés no riacho, Manoel de Barros fez do Brasil interiorano um lugar de encantamento linguístico, em Livro sobre nada (Ed. Alfaguara, 2016, 104 p.) nos mostra que o mundo não foi feito para ser entendido, foi feito para ser sentido.
Somos um povo de ironias, sutilezas e bem-fazeres. Como Machado de Assis, no conto Pai contra Mãe (Ed. Cobogó, 2002, 72 p.), onde retratou com crueldade e precisão um Rio de Janeiro do século XIX, onde a beleza das ruas coloniais convive com a violência da escravidão e da pobreza. Embora o cenário seja composto por becos, sobrados e esquinas tranquilas, Machado denuncia o abismo entre aparência e estrutura, revelando, um Brasil tão fascinante quanto contraditório. Sua literatura não exalta belezas com a obviedade de um panfleto turístico, mas nos força a olhar de novo, com olhos atentos e incômodos, para aquilo que vivemos e o que queremos viver.
E se há alguém que soube traduzir com humor, erudição e alma o Brasil profundo foi Ariano Suassuna. Defensor apaixonado da cultura popular, ele enxergava no sertanejo, no artesão, no contador de causos e no palhaço de feira os verdadeiros guardiões da inteligência nacional. Uma de suas maiores obras, O Auto da Compadecida (Ed. Nova Fronteira, 2018, 208 p.), transformou a moral cristã e a esperteza nordestina em espetáculo teatral, onde o pobre ri da própria miséria e ainda encontra Deus no meio da confusão. Ariano acreditava que o Brasil não precisava copiar o estrangeiro para ser grande: bastava olhar para si mesmo com orgulho. E talvez tenha sido ele quem melhor nos preparou para compreender esse Brasil dos memes. Onde o riso é resistência, a ironia é linguagem de sobrevivência, onde os pobres e oprimidos, mesmo esgotados, ao acordarem dizem: “Obrigado, Senhor, por mais um dia.”
Porque aqui, até quem nada tem, sonha. Sonha com um prato cheio, com um salário justo, com uma folga no domingo. Sonha, mas também ri. E, nesse riso, entre a lágrima e a gargalhada, reafirma todos os dias sua soberania enquanto povo brasileiro.
Há quem exalte sua pátria com bandeiras nas varandas e um orgulho inflamado por tropas e cifras. Por aqui, nosso patriotismo não é feito de exibição, mas de invenção. Não se pendura na sacada, mas se encarna na pele, na fala, na comida, no terreiro, no batuque e no livro. Nossa forma de amar o Brasil é silenciosa e persistente, feita de pequenos gestos cotidianos e grandes batalhas sociais. Lemos para sobreviver, escrevemos para não esquecer. Lutamos, e nisso também criamos, porque cada greve, cada marcha, cada poema é uma forma de dizer: estamos vivos.
A literatura brasileira é o espelho onde nos reconhecemos, com nossas falhas, potências, contradições e esperanças. É ali que se revelam nossas batalhas por justiça, nossas denúncias das desigualdades, nosso desejo de um país mais digno para todos. Dos morros aos sertões, das favelas aos manguezais, seguimos escrevendo o Brasil com palavras e com suor. E enquanto houver alguém declamando Drummond no metrô, lendo Carolina Maria à luz de vela ou compartilhando um meme com sarcasmo e crítica social, nossa brasilidade seguirá intacta. Porque aqui, resistir também é narrar. E amar o Brasil é continuar contando sua história, do nosso jeito, com nossas letras, nossas dores, nossos risos e nossa fé teimosa em dias melhores.
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