top of page

Quando não se lê o mundo: livros fechados, telas acesas

Em minha última ida à barbearia, notei um livro fechado sobre uma mesa de canto. Ele repousa, quase invisível, enquanto os olhos de outras pessoas no salão se desviavam para as telas iluminadas dos celulares. Os dedos deslizam rápido, ansiosos, saltando de manchete em manchete. De reels e feed.


Pulei duas posições no sofá e me aproximei do livro. A intenção era pegá-lo. A capa era bonita, limpa, com fundo chapado em preto e o título provocativo em letras garrafais na cor branca: “Não leia este livro: gestão do tempo para pessoas criativas” (Ed. Belas-Letras, 2019, 184 p.).


Não, não pude ler o livro naquele momento. A recepcionista, uma moça lá na faixa dos 19, 20 anos, gritou baixo:


— Ei, querido, o livro é decoração!


Me assustei, apesar do grito ser baixo, o timbre da voz era nitidamente de bronca. Uma das pessoas que estava ao meu lado riu sorrateiramente, outra que notou que o celular estava em minha mão, sugeriu:


— Oh colega, não precisa ler tudo. Veja as notícias no Google, eles resumem tudo.


A recepcionista complementou:


— O TikTok e o Instagram também mostram notícias. Vi agora um capotamento na Av. dos Estados.


Não respondi ninguém. Já estava angustiado com a demora do cabeleireiro e fiquei ainda mais em perceber que as histórias e as vidas agora cabem em uma manchete de duas linhas e storys de 15 segundos.


Cortei o cabelo, voltei para casa e dias depois li o bendito livro. Interessante e totalmente provocativo em relação ao título que o encapa. Percebi que o problema da pressa em consumir palavras é que ela não é neutra. O conteúdo não-lido gera consequências. É no silêncio das páginas ignoradas que crescem os discursos autoritários.


Paulo Freire, em “Pedagogia do Oprimido” (Ed. Paz & Terra, 2019, 256 p.), já havia nos lembrado que a leitura do mundo precede a leitura da palavra. Ler não é apenas decifrar os sinais gráficos, mas decifrar realidades. Quando esse processo falha, a escola perde sua função essencial de formar consciências críticas. O analfabetismo funcional, que tanto se repete nas estatísticas educacionais, ganha hoje uma nova face: um analfabetismo funcional 2.0. Não basta mais decodificar letras; é preciso compreender hipertextos, dados, imagens, vídeos. E sobretudo: discernir informação de manipulação.


Não basta ler que Eva viu a uva. É urgente entender o contexto em que Eva está inserida, porque a uva estava ali, quiçá, quem a produziu. Sem entender o contexto e aprofundar a reflexão crítica, a leitura não passa de um exercício vazio, incapaz de revelar as engrenagens do mundo.


Quem não lê um texto simples, de 5 minutos de leitura, tende a ser a mesma pessoa que compartilha notícias falsas sem pestanejar. Quem não consegue interpretar uma poesia é a mesma que transforma democracia em palavrão. A ausência de leitura crítica cria terreno fértil para que ditadura seja pedida de volta como se fosse sinônimo de ordem. Anistia vira apenas uma palavra repetida em discursos inflamados, sem que se compreenda sua complexidade histórica.


É nesse vazio que florescem os discursos autoritários. Quando se confunde leitura com repetição, perde-se a capacidade de questionar. O sujeito passa a aceitar qualquer narrativa pronta, seja ela servida em um panfleto antigo ou em um post de rede social. E assim, com a mesma naturalidade com que se compartilha um boato, entrega-se de bandeja o destino coletivo aos que manipulam sombras.


Em “A Sociedade do Cansaço” (Ed. Vozes, 2015, 236 p.) Byung-Chul Han descreve uma era saturada de informação, mas incapaz de gerar reflexão. Vivemos exaustos pelo excesso, mergulhados em notificações que nos mantêm ocupados demais para pensar. A sobrecarga informacional não nos torna mais lúcidos; ao contrário, embota. E nesse cansaço, aceitamos as sombras como realidade. O filósofo coreano parece conversar diretamente com Platão: na “A República” (Ed. Lafonte, 2017, 368 p.), quando o mito da caverna mostra prisioneiros que confundem sombras projetadas com o real. Séculos depois, mudaram apenas as paredes da caverna: agora são as telas do celular, iluminadas e sedutoras.


É nesse ponto que a educação se revela não como detalhe, mas como linha de fronteira. Escolas e universidades que ensinam apenas a repetir fórmulas preparam sujeitos dóceis; enquanto aquelas que ensinam a perguntar, questionar, libertam e ensinam a ver o mundo. E essa libertação não é retórica: é sobrevivência democrática. Quem não lê o mundo, entrega sua própria voz para que outros a escrevam.


Na prática cotidiana, certamente você também vê a consequência. Nas conversas de esquina, nos grupos de WhatsApp da família, no tom inflamado das redes sociais, democracia e ditadura aparecem reduzidas a caricaturas. Fala-se de “liberdade de expressão” para justificar ofensas e agressões; pede-se “ordem” para legitimar violência contra movimentos. A ausência de leitura crítica faz com que conceitos complexos se tornem caricaturas prontas para consumo rápido.


A história contada nos leva a crer que as democracias se perdem em golpes cinematográficos, ágeis e imediatos. A história escrita, lida, estudada, demonstra que o sistema político se esfarela devagar, no acúmulo de pequenos descuidos. Perde-se quando alguém lê apenas a manchete. Quando alguém compartilha sem verificar. Quando um professor deixa de insistir na interpretação de um texto. Quando um estudante acha que a escola não tem relação com a vida. Cada omissão é uma fresta pela qual o autoritarismo se infiltra.


Volto à imagem inicial: o livro fechado e a tela acesa. Não se trata de nostalgia dos tempos em que se lia mais, mas da constatação de que sem leitura – do texto e do mundo – não há pensamento crítico possível. E sem pensamento crítico, a democracia se torna apenas mais uma palavra repetida, vazia como tantas outras. Platão já sabia, Freire alertou, Han diagnosticou: é urgente reaprender a ler. Ler devagar. Ler desconfiando. Ler para além do enunciado. Porque quando não se lê o mundo, a história corre o risco de ser escrita pelos que mais gritam, e não pelos que mais refletem.


Ler o mundo é, ainda e sempre, o primeiro ato de liberdade.


ree


Posts recentes

Ver tudo
O Curupira e a Cúpula dos Homens

Na COP30, entre drones, discursos e promessas, o Curupira lembrava o essencial: a floresta fala. Fala em raiz, em silêncio, em memória. E só haverá futuro quando aprendermos a ouvir os territórios viv

 
 
 

Comentários


Rede Internacional

Movimentos Docentes

Dúvidas (1).png
  • Instagram
  • Facebook
  • Youtube
  • Whatsapp
  • Spotify

Acompanhe nossas redes e faça parte

da nossa Comunidade Movimentos Docentes

Rede MD e Movimentos Docentes é uma marca registrada © 2025

Desenvolvido por Viesba & Viesba Consultoria e Projetos

Apoio e desenvolvimento:

Logo_vv (2).png
bottom of page