O homem que devolvia palavras
- Everton Viesba

- 5 de jul.
- 3 min de leitura
Numa sociedade insólita, rodeada por tecnologia, feed e timeline, palavras começaram a sumir. A primeira foi esperança. Ninguém percebeu de imediato. Continuavam a dizê-la em frases de efeito, discursos políticos, mensagens de aniversário. Mas ao pronunciá-la, algo soava oco. Como se a palavra existisse, mas seu recheio tivesse sido retirado com uma pinça invisível. Os dicionários ainda a listavam. Os poetas ainda a invocavam. Mas ninguém, de fato, sentia o que diziam.
Aos poucos, outras palavras começaram a esvaziar: verdade, compromisso, prazer, futuro. Era como viver em um dicionário de significados ausentes. As pessoas falavam muito, mas se entendiam cada vez menos. Os jornais continuavam a imprimir manchetes, as aulas seguiam nos quadros, os padres pregavam nos altares. Mas tudo soava como uma encenação de uma língua morta. Foi então que ele apareceu. Um homem magro, de terno cinza desbotado, óculos tortos e uma maleta gasta. Batia de porta em porta, com uma voz calma e olhos fundos.
— Perdeu alguma palavra? Perguntava.
Se a resposta fosse afirmativa, ele abria sua mala, tirava um caderno de capa preta e anotava. Em troca, oferecia um pequeno bilhete selado, com uma palavra escrita à mão e uma instrução: cole-o sob a língua antes de dormir. Os céticos riam.
— Charlatão.
Mas aos poucos, os relatos começaram a circular. Um carteiro que voltou a sentir entusiasmo ao planejar suas entregas. Uma senhora que, ao recuperar a palavra filho, chorou pela primeira vez em quinze anos. A linguagem parecia retornar, mas com um sabor novo, mais denso, como se fosse fermentada pelo tempo. O preço, porém, era silencioso. O carteiro passou a se perder pelas ruas. A senhora esqueceu onde guardava as chaves. Um adolescente recuperou a palavra liberdade, mas deixou de reconhecer o rosto da própria mãe. O homem avisava:
— Toda palavra tem raiz, e toda raiz exige solo. Ao voltar, ela desaloja o que estiver ocupando o lugar.
Eu, professor de letras e cético por natureza, observei tudo com desconfiança. Sempre defendi que a língua evolui, que as palavras, quando expressas, tem poder. Mas quando percebi que eu mesmo já não sabia o que queria dizer ao escrever a palavra “Eita” numa conversa de WhatsApp, comecei a temer. Esperei por ele. Quando veio, hesitei. Mas enfim, abri a porta e perguntei:
— Pode me devolver o significado? Ele sorriu.
— Ah... essa é das mais profundas. Anotou calmamente.
— Pode levar algumas semanas. Mas voltarei. Deixou-me um marcador de página com uma anotação em latim: Verba volant, scripta manent.
Durante semanas, comecei a ter sonhos estranhos. Neles, eu via as palavras como criaturas esvoaçantes, presas em gaiolas feitas de rotina. Algumas gritavam. Outras choravam baixinho. Acordava exausto. Comecei a esquecer datas, trechos de poemas, rostos de colegas. Mas havia uma estranha clareza no vazio que se formava. Numa manhã cinzenta, ele voltou.
— Aqui está. Entregou-me um envelope amarelado. Dentro, um papel com a palavra significado, escrita em tinta azul, com uma caligrafia firme e simples. Fiz como instruído. Colei sob a língua e adormeci.
Acordei sem palavras. Literalmente. Minha mente estava vazia. Levantei, olhei em volta, e nada tinha nome. Toquei objetos que não reconhecia, vi fotografias que não compreendia. Mas no silêncio, havia um tipo de presença que nunca sentira. Um sentido sem forma. Uma linguagem sem som. Levei dias para reaprender a nomear. Comecei pelas palavras mais simples: água, casa, luz. Mas agora, ao dizê-las, era como se as experimentasse do zero. Dizer “água” fazia minha boca salivar, “luz” ardia nos olhos. Era como aprender a linguagem de novo, mas com o corpo, não com a gramática.
A cidade, nesse meio-tempo, havia se transformado. Quem aceitava as palavras devolvidas tornava-se outra pessoa. Mais sensível, mais confusa, mais... nu. Quem se recusava, perdia o acesso a qualquer sentido. Ficavam agressivas, repetitivas. Viviam em slogans vazios, mensagens curtas e abreviadas, como zumbis digitais.
O homem de terno cinza tornou-se uma figura mítica. Uns diziam que era um poeta antigo reencarnado. Outros, um castigo dos deuses da linguagem. Nunca cobrava nada em dinheiro. Apenas pedia silêncio após o recebimento da palavra. “Para que ela encontre seu lugar”, dizia.
Eu, agora, sou um dos que ajudam a devolver palavras. Ensinado por ele. Não entendo totalmente o processo. E acho que não é para ser entendido. Mas sei reconhecer quando alguém diz “amor” sem saber o que diz. E é aí que ofereço o envelope. Porque palavras não morrem. Elas se escondem. Esperando que alguém as mereça de novo.
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