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Ler ou não ler: o tempo na leitura e o tempo sobre as telas

Tem dias que eu passo mais tempo deslizando o dedo do que os olhos. As telas me engolem antes mesmo do café esfriar. Dezenas e mais dezenas de e-mails, vídeos de 30 segundos, um meme que já vem velho, uma notícia pela metade. Depois outro vídeo, notificações e mais notificações, um áudio que chega atrasado. O tempo escorre. E o livro ali, em silêncio. Fechado. À espera de um tempo que nunca chega.


Ainda assim, enquanto editor e, atualmente, no doutorado em Educação, leio muito e bem acima da média, mas todas são leituras processuais que se fazem necessárias pelo trabalho e pela pesquisa. A leitura pelo prazer, visitar as obras de Machado de Assis que tanto gosto, Edgar Allan Poe que sempre me fascina e até mesmo estudos sobre os livros da Bíblia e as terras sagradas, tem ficado em terceiro, quarto, último plano da lista infindável de tarefas semanais. Já tentei organizar meu dia para conseguir “ler mais”. Marquei horários, criei metas, baixei aplicativos de controle de leitura. Não adiantou, sempre tem algo urgente. Ou, na maioria das vezes, uma tarefa mais fácil de ser cumprida. As telas me oferecem alívio imediato, seja por atender e cumprir uma tarefa ou responder alguma cobrança, seja por um rápido um scroll e pronto, me distraí. Os livros exigem outro tipo de presença. E às vezes, confesso, é justamente isso que me assusta.


Há uma diferença brutal entre o tempo que se consome numa tela e o tempo que se oferece a um livro. Na tela, tudo acontece rápido demais. O cérebro corre, a atenção salta, o corpo fica inquieto. O livro, ao contrário, exige freio, fôlego. Pede que fique. Que demore. E, sejamos honestos, nessa correria de hoje, nem sempre estamos dispostos a esse tipo de encontro. Mas deveríamos estar mais, precisamos! Eu, particularmente, já não leio como antes. E isso me inquieta. Às vezes acho que desaprendi. Outras vezes, penso que apenas me tornei refém de um tempo que não aceita demora. Maryanne Wolf, em “O cérebro no mundo digital” (Ed. Contexto, 2019, 256 p.), alerta que estamos perdendo a habilidade de ler profundamente. É como se a pressa tivesse invadido também o ato de pensar. E se pensar exige tempo, quem tem tempo para isso?


Há quem abra um livro e, no intervalo de três páginas, olhe o celular quatro vezes. Não por urgência, mas por hábito, por vício. Byung-Chul Han talvez dissesse que se trata de uma forma de autoexploração, um regime de vigilância interior, como descreve em Sociedade do Cansaço (Ed. Vozes, 2015, 136 p.). Estamos constantemente disponíveis para tudo, menos para o silêncio. E ler exige justamente esse encontro: com o que está quieto, com o que não grita, com o que pede demora. Diante da estante, muitos experimentam um tipo curioso de culpa. O livro fechado parece cobrar presença, a promessa não cumprida da leitura se transforma em peso. Como se não ler o bastante fosse uma falha moral. Como se o não-leitor fosse alguém em falta, mas será mesmo? Ou isso seria apenas mais um efeito colateral de uma cultura que transforma até o tempo de ler em tarefa?


Ler deixou de ser apenas prazer e tornou-se meta, performance, conteúdo. Um livro nas mãos virou legenda para foto, vídeo viral no Tik Tok. Sinal de bom gosto, prova de capital cultural. O que era refúgio passou a ser vitrine e o leitor, cada vez mais, é convocado a também ser influenciador. O tempo da leitura virou tempo de exibição. Enquanto isso, os livros seguem esperando. E os leitores, exaustos, tentam convencer a si mesmos de que ainda há tempo. Em alguns dias, a única leitura possível é o nome do autor na capa. E isso, talvez, também seja leitura. Porque ler não se resume ao ato físico de virar páginas. Às vezes, a pausa também carrega desejo.


Em minhas andanças e reflexões, entendo que o que falta, talvez, não seja vontade, mas sim a presença. Não se trata de tempo livre, mas de tempo inteiro. Tempo que não é interrompido a cada vibração, que não precisa se justificar. Um tempo sem plateia, sem pressa, sem notificações. Um tempo em que a leitura volta a ser encontro, e não desempenho. Tenho testado isso em algumas viagens e aos fins de semana. Chego a ficar 10, 20 horas sem ver o celular. Gera um caos? Gera, mas o mundo segue funcionando. Nessa perspectiva, ler torna-se um gesto radical. Um desvio da lógica dominante, algo como uma negativa à aceleração imposta. Uma verdadeira escolha pelo agora.


Na lógica da internet, tudo precisa ser breve, impactante, escaneável. O conteúdo vem em fatias, o pensamento em slogans e até os livros entram nas danças virais: são resumos animados, resenhas com música de fundo, listas de “cinco aprendizados que você precisa tirar dessa leitura”. O livro é transformado em cápsula e a leitura, em consumo rápido. A filósofa Barbara Cassin, ao refletir sobre o impacto da linguagem acelerada nas subjetividades contemporâneas, chama atenção para a perda da atenção demorada. Aquela que se estende no tempo, que requer espera. É essa espera que o livro exige. No mesmo compasso, Nicholas Carr, em Geração Superficial (Ed. Agir, 2019, 156 p.), alerta para o risco de sermos apenas consumidores de conteúdo e não mais sujeitos da experiência reflexiva. A leitura, demonstra o autor, é uma das poucas práticas que ainda exige tempo encarnado, tempo que pensa, que sente, que para... Não há como ler profundamente sem ceder tempo àquilo que não é imediato.


Mas as gerações atuais não foram educadas para esperar. Fomos reeducados para responder rápido, engajar logo, comentar em seguida. Se demorar, perde a “trending”. E quem espera, hoje em dia, é visto como desatualizado. Como se fosse possível processar a experiência de um livro no mesmo ritmo em que se lê uma legenda no Instagram. Há uma diferença de fôlego entre o leitor e o usuário. O leitor precisa de tempo interno, precisa respirar as pausas, tolerar o tédio entre capítulos. O usuário precisa de estímulo constante. Por isso a rolagem não termina nunca, cada novo vídeo é uma promessa de que o próximo será melhor. E assim seguimos, zapeando sem saber exatamente o que estamos procurando.


Christian Dunker, em Reinvenção da Intimidade (Ed. Ubu, 2017, 320 p.), nos fala da dissolução do espaço comum do encontro. As telas substituíram os rituais coletivos de convivência, mas também invadiram os espaços íntimos. Estamos hiperconectados, mas desconectados do ritmo que nos permite sentir. E talvez a leitura tenha sido uma das primeiras vítimas disso. Há um tempo próprio da leitura que exige resistência. É preciso, como diz Georges Didi-Huberman, “demorar-se na imagem”. No caso do livro, é demorar-se no parágrafo, tocar a palavra com os olhos, mastigá-la por dentro, deixar que ela faça eco. Não é só ler o que está escrito, é deixar-se ler por aquilo que está ali. E isso não combina com pressa.


Não é que a tecnologia seja vilã, longe disso, sou um entusiasta das tecnologias digitais e, inclusive, trabalho diariamente com elas. Mas devem ser apenas ferramentas, ter intencionalidade no uso. Contudo, como qualquer ferramenta, revela o modo como vivemos. E hoje vivemos acelerados, saturados, exaustos. Talvez por isso a leitura pareça, para muitos, um desafio quase físico. O corpo não se aquieta, os olhos não param e o dedo quer rolar. Mas se a gente insiste, se atravessa essa barreira inicial, começa a perceber outra textura no tempo. Um tempo mais espesso, menos fragmentado, um tempo que nos devolve para dentro. E isso, hoje, é quase uma forma de rebeldia.


O livro não se adapta bem à pressa, a grande maioria pede presença. E essa presença não é medida em páginas por minuto. Não se trata de concurso de datilografia. Essa presença é medida em espanto, em silêncio, surpresa, em pausa. Mas quem está disposto a pausar hoje em dia? Se até o descanso precisa ser justificado. O ócio virou luxo é item de luxo e a lentidão uma falha de caráter. Talvez por isso tanta gente comece livros e não termine. Não por desinteresse, mas porque a cabeça está programada para se mover o tempo todo. Quando o livro pede que você fique, que demore, que pare, é como se um alarme interno fosse acionado. Um incômodo, urgência difusa. A mente diz: você tem algo mais útil e urgente para fazer.


A produtividade, nessa lógica, contamina tudo. Inclusive o prazer em ler. E aqui volto para mim, quando a leitura vira tarefa, perde o encanto. É como transformar o abraço em meta diária, um beijo em obrigação de casal saudável. A leitura, se não for vivida como encontro, vira apenas mais uma cobrança. E, no fundo, o que mais temos hoje é gente cobrando de si mesma até os momentos que deveriam ser gratuitos. Retomando o que disse em uma coluna há algumas semanas, voltei a ler Moby Dick (Ed. 34, 2019, 648 p.) e estou animado com os encontros que Herman Melville irá proporcionar. Esta será minha leitura de inverno. E você? Já separou a sua? Aproveite os diuturnos frios dessa estação, pegue um livro da prateleira ou da biblioteca do bairro e delicie-se com ele durante o inverno. Não se cobre ler duas, quinze páginas por dia. Se cobre em senti-lo.


A escritora Olga Tokarczuk disse, certa vez, que “há livros que precisam de invernos inteiros para serem lidos”. E há leitores que precisam de silêncios longos para se encontrar de novo com o desejo de ler, mas tudo isso desaparece quando a régua é o tempo dos outros... E o que é o feed senão exatamente isso? O tempo dos outros? Bom, este será tema de outro artigo, aqui nos basta entender que entre o toque da tela e o virar da página, há uma escolha. Uma escolha de tempo, de presença, de silêncio. E essa escolha, mesmo que feita só por quinze minutos antes de dormir, pode ser o começo de um retorno. Um retorno a si, à palavra e ao mundo.


Por isso, da próxima vez que você se pegar rolando o feed pela terceira hora consecutiva, talvez valha o gesto mais simples e mais urgente: fechar o aplicativo e abrir um livro.



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