Do morango do amor à adultização: crianças não são miniadultos!
- Lara Santana

- 16 de ago.
- 5 min de leitura
–– “Mais um lindo exemplo de empreendedorismo mirim!”
–– “Peraí, mas se o cara com 10 anos já é empresário, o que ele vai ser quando crescer?”
–– “Criança!”
(VASQUES, Edgar. Rango. Extra Classe, Porto Alegre. Edição 194. Jun. 2015. Quadrinhos, p. 27)
Nos últimos dias, a febre do ‘Morango do Amor’ foi abruptamente substituída pela internet e ganhou um concorrente a altura –– divulgações e denúncias a perfis que expõem imagens e vídeos sugestivos de crianças e adolescentes. Em vídeo publicado às vésperas do dia 07 de agosto, o Youtuber Felca (Felipe Bressanim Pereira) trouxe uma forte reflexão sobre o perigo das redes sociais na promoção de conteúdos aliciadores, que como assegura, contribuem e alimentam para a hiperssexualização e adultização de menores de idade.
A pauta da discussão trazida por Felca se sustenta por meio de uma intensa investigação, encabeçada pelo próprio YouTuber, em investigar como os algoritmos das redes sociais facilitam a veiculação de conteúdos p0rn0gr#fic0s e adultificados de menores, além claro, de sua expressa denúncia à perfis com seguidores na casa dos milhões, que promovem tais conteúdos. Este ato movimentou mídias jornalísticas, influencers digitais e até mesmo o Senado brasileiro.
A problemática da ‘adultização’ vem sendo discutida por pesquisadores, sociólogos e psicólogos há muitos anos. De acordo com Marina e Maria Raquel Caetano (2016), a ‘adultização’ surge por meio de uma lógica mercantil e consumidora, voltada à infância. A utilização de crianças como fonte de renda decorre da divulgação em massa –– feita pelas mídias digitais, propagandas e afins, que incentivam a erotização de menores, em poses ou contextos ‘sugestivos’, além claro, do forte apelo em ‘amadurecer’ antes do tempo.
Em uma perspectiva histórica, sabe-se que a criança –– enquanto indivíduo, nem sempre foi cuidada, assim como seu desenvolvimento por completo. Os registros da infância se dão pela ‘ótica’ do adulto, visto que a criança não pode registrar sua própria história. As concepções do que é ‘ser criança’ divergem desde a Antiguidade, perpassando por definições como ‘o que é incapaz de falar’ até ‘deixai vir a mim as criancinhas’ (Mt,19:14, Bíblia, 2009).
Esta ‘ausência’ em conceber uma consciência infantil fez com que por muito tempo elas –– as crianças, fossem tidas como ‘adultos em miniatura’, pois detentores de funções utilitárias, poderiam trabalhar como qualquer operário e até mesmo participar de conversas diversas, vulgares ou não.
Com o tempo, mudanças com relação aos cuidados das crianças foram ocorrer por interferência do poder público e da Igreja, visando a proibição de crimes contra os menores. De acordo com Caetano e Caetano (2016), o desenvolvimento das Ciências Humanas possibilitou a retirada das crianças de locais de trabalho e a promoção de inseri-los em ambientes de aprendizagem – a escola.
O papel da família é sumariamente relevante neste cenário, pois tal como a Educação, exerce um papel importante na formação dos menores, assegurando direitos, deveres e bem estar físico, psicológico, emocional e mental. A globalização da “infância”, traz conforme diz Sarmento (2001), uma avalanche comercial de produtos voltados a menores, altamente promovidos pelas mídias digitais.
Essa nova configuração –– decorrente das mudanças sociais, ignora a singularidade do indivíduo menor, que ainda em processo de construção, não consegue visualizar –– e evitar, o uso de sua inocência em prol de uma entrada precoce no mundo adulto.
A contemporaneidade, casa da Sociedade do Cansaço de Byung-Chul Han (2017), traz a interrupção de verbetes como ‘Toda criança é assim’ ou ‘Isso é coisa de criança’, vez que nesta nova configuração social, não há apenas um jeito de ‘ser criança’. Todavia, a sociedade atual está mergulhada –– “de corpo e alma”, na pressão em ‘ser’ e ‘ter’. A pressão da mídia estimula a inquietação pois o indivíduo de hoje não responde a ‘um outro’, responde a si.
Essa lógica da auto exploração leva, como muito bem fundamenta Han, ao esgotamento mental, físico e emocional, não apenas dos adultos, como tambem dos menores de idade. O limite entre viver e sobreviver reside em linhas tênues e superficiais demais para o córtex pré-frontal de um individuo de até 17 anos, que –– como discutem Jean Piaget e Lev Vygotsky, ainda não dispõe de todas as “ferramentas” para lidar com as demandas ao seu redor.
Por mais aplicado que seja ou esteja o sujeito menor de 18 anos, seu processamento emocional poderá influenciar mais do que a lógica pura; sua visão de mundo ainda estará em construção, sendo fortemente moldada por experiências e referências externas e sua capacidade de julgamento crítico e de ponderação só se consolidará na vida adulta jovem.
Quando expostos a responsabilidades ou dilemas complexos –– ainda mais sem suporte e supervisão, crianças e adolescentes podem internalizar pressões das quais não conseguem processar emocionalmente. Situações assim, podem levar ao desenvolvimento de ansiedades e da autocrítica excessiva e do sentimento de insuficiência por parte dos menores – como bem traz um recorte do vídeo do YouTuber Felca, onde uma criança de menos de 16 anos, aparece indagando ‘quando será a minha chance de ganhar dinheiro?’.
A adultização interrompe o processo natural da busca de identidade, grande estrela da fase adolescente. A criança, na sociedade atual, passa a se moldar pelos padrões estéticos e comportamentais, principalmente, os “virais” promovidos pelos aplicativos de mídia digital mais famosos. A precocidade antecipa a experiência e dificulta a vivência, pois como sabemos, viveremos nós mais tempo enquanto adultos, de que como jovens e crianças.
O excesso de exposição discutido recentemente nas redes sociais é apenas mais uma reflexão a ser promovida dentro da nova configuração social em que estamos inseridos, onde os palcos, as encenações, os likes, as dancinhas e o ganhar a vida até os 15 anos são mais instigantes do que dizer ‘Criança tem que ser criança’.
Referências:
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida, revista e atualizada. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009.
CAETANO, Marina; CAETANO, Maria Raquel. Adultização na infância: as representações das crianças dos anos iniciais do ensino fundamental. Revista Zero a Seis. ISSNe 1980-4512 | v. 18, n. 33 p. 83-107 | Florianópolis | jan-jun/2016
FELCA. A adultização. [S. l.: s. n.], 06 ago. 2025. 1 vídeo (49 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FpsCzFGL1LE&t=5s. Acesso em: 08 ago. 2025.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2017.
PIAGET, Jean. A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho, imagem e representação. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2010.
SARMENTO, Manoel Jacinto. A Globalização e a Infância: impactos na condição social e na escolarização. In: GARCIA, Regina Leite & LEITE Aristeo Filho (orgs.). Em defesa da educação infantil. Rio de Janeiro: DPEA, 2001, P. 13 – 28
VASQUES, Edgar Rango. Extra Classe, Porto Alegre. Edição 194. Jun. 2015. Quadrinhos, p. 27.)
VYGOTSKY, Lev Semyonovich. A formação social da mente. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
.png)

Comentários