As gavetas e os livros que a gente não abre
- Everton Viesba

- 7 de jun.
- 7 min de leitura
Existe uma gaveta na casa de meus pais que ninguém abre. Fica num armário balcão, debaixo da escada na cozinha. Lá dentro tem um isqueiro, vários botões velhos, algumas tralhas e uma chave philips quase sem ponta. Tem também muitos parafusos de diversos tamanhos que, certamente, já passaram por inúmeros móveis. Acho que é assim também com os livros que a gente começa e não termina: a história para de andar, o livro volta para a estante, mas a gente não tem coragem de terminar a leitura ou mesmo dispor dele para alguém que o leia. E quem esvazia a dita gaveta?
Assim como um livro abandonado pelo tempo, toda casa tem uma gaveta dessas, uma espécie de território neutro, onde o tempo desacelera e o esquecimento ganha forma de clipe enferrujado, botão sem par ou pilha vencida. Quando visito meus pais e olho esta gaveta, fico pensando que nem tudo precisa de função. Algumas coisas precisam apenas existir como vestígios. Quando pensei nesta temática sobre livros inacabados e gavetas abandonadas, fiquei com a impressão de que isso é como uma forma de rebeldia contra si mesmo, algo como uma parte do corpo que não cuidamos direito. Um lugar onde a poeira dos dias se acumula, onde os rastros do que fomos vão se encostando sem reclamar.
Certa vez, li uma frase atribuída à Roland Barthes, que dizia algo como
“a memória é uma forma de organização do sofrimento”.
E talvez seja mesmo. Porque ali, entre objetos gastos, santinhos e calendários de geladeira com cheiro de mofo, o que há é dor empacotada. Uma dor sem grito, sem enredo, mas que permanece. Uma caneta que não funciona mais, me lembra de um texto que comecei a escrever e nunca terminei – sonhava em ser escritor e cá estou, oba! Na sua, talvez tenha aquela foto dobrada em quatro partes que o remeta a uma viagem que terminou antes da hora ou então um pingente que se quebrou do colar e as lembranças não o permitira jogar fora. Não são lembranças felizes, mas também não são feridas abertas. São cicatrizes em forma de tralha.
Não acho que devemos ter vergonha dessas gavetas. Aliás, começo a acreditar que a dignidade da vida adulta também mora nesse pequeno acúmulo de “coisas não-essenciais”, como minha terapeuta chama. Ninguém precisa saber que você guarda a embalagem do bombom que ganhou no primeiro encontro, nem que tem uma folha seca guardada entre as páginas de um caderno velho. Essas coisas dizem respeito a um tipo de afeto que a produtividade não entende. São ruídos da alma, pequenas teimosias da memória.
O “Diário de uma Paixão” (Ed. Arqueiro, 2017, 176 p.) de Nicholas Sparks é um romance que ilustra bem este sentimento. A narrativa gira em torno da memória, da permanência dos afetos e dos pequenos objetos e gestos que resistem ao tempo, mesmo quando tudo parece ter se perdido, inclusive a consciência. No livro, Noah mantém uma rotina diária de leitura para Allie, ciente de que ela já não se lembra de quem ele é, devido ao Alzheimer. Nessas perdas de objetos e tralhas guardadas, a dignidade da vida já não está mais no controle, mas justamente no cuidado silencioso, na insistência afetuosa, na permanência daquilo que muitos já teriam jogado fora.
Pessoalmente, me assusta um pouco essa pressa com que as pessoas querem se livrar das suas tralhas. A onda do minimalismo, do desapego, da casa “clean” que parece showroom de revista, às vezes me soa como uma tentativa de limpar a alma à força. Como se apagar os rastros do que fomos fosse nos deixar mais leves. Mas leveza, como já ensinou Italo Calvino em “Seis propostas para o próximo milênio” (Ed. Companhia das Letras, 1990, 144 p.), não é ausência de peso. É a capacidade de carregar esse peso com outro olhar. E, acredito eu, que a literatura seja uma das formas mais elegantes de aprender isso.
Eu nunca fui de receber cartas, minha família sempre foi fisicamente muito próxima e essa é uma cultura com a qual não tivemos o prazer de conviver. Diferente de minha excelentíssima, que sempre recebeu e enviou muitas cartas para a família e amigos e as guarda com carinho. Vejo neste comportamento dela não uma expectativa de resposta ou uma memória física de diálogos vencidos pelo tempo, mas um gesto quase sagrado de manter o que foi dito como uma verdade atemporal. Essas cartas estão ali, na gaveta, silenciosas e às vezes aberta pela metade, como uma história sem ponto final. Não sei se um dia ela as jogará fora, mas sei que cada carta representa um pedacinho de si mesma que o tempo não levou. E talvez esse olhar seja o que cada um precise para começar, recomeçar ou mesmo arrumar a própria bagunça.
As evoluções de cada geração nos trazem aprendizados e amarguras que precisamos aprender a lidar. Se somos criados com pilares que mostram um mundo perfeito, a frustração e a dor por descobrir a verdade pode abalar ou fazer ruir tal estrutura. Naturalmente, a vida adulta é feita sobre as possibilidades – abrir e fechar portas, mas a vida por si mesma não é um ciclo perfeito. Há problemas, dores e desamores que temos condição de resolver e encerrar, outros que precisamos apenas guardar na gaveta e sentir. Permitir sentir e passar pelo sofrimento. O luto não é isso? Talvez seja mais prático lidar porque não há opção do que fazer, para a morte, não há solução, mas o princípio é o mesmo...
A cultura da eficiência transforma a nossa dor em falha pessoal. A tristeza é desvio “Não fique triste”, pausa vira preguiça e viver quase é sinónimo de funcionalidade. Dentro dessa lógica, só há espaço para o que serve. Quem precisa de tempo para chorar não está sendo produtivo. Novamente trago Han, que discute em “Sociedade do Cansaço” (Ed. Vozes, 2015, 136 p.) o modus operandi da vida no sistema econômico de hoje: qualquer sinal de cansaço e esgotamento é visto como falha, portanto, o sujeito vira seu próprio carrasco impedindo-se de descansar. Sofrer por um desamor não é mais opção. Por isso as gavetas são essenciais, esses espaços clandestinos da nossa subjetividade se tornam guardiãs do que o mundo não tolera ver em nós: fragilidade, dúvida, desorientação.
Essa vida, a minha e a sua, não tem manual, mas tem gavetas. E entender o que guardamos nelas talvez seja um jeito de começar a entender o que estamos fazendo com o tempo que nos foi dado. Porque enquanto escondemos dores para não preocupar os outros, adiamos sonhos para parecer racionais e acumulamos promessas que nunca se cumprem, o mundo continua girando. E a alma, mesmo sem caber nas planilhas, continua pedindo espaço. Um espaço só dela, ainda que seja dentro de uma velha gaveta.
Tal qual as gavetas, os livros inacabados podem dizer mais sobre nós do que os que terminamos. Afinal, eles são testemunhas do tempo em que nos perdemos de nós mesmos. Lembro-me de começar a ler “Moby Dick” (Ed. 34, 2019, 648 p.) logo no início da pandemia de Covid-19, também lembro de ter desistido da leitura logo depois das primeiras páginas em que Ismael, perdido e errante, decide embarcar para o mar em busca de sentido, a angústia que a leitura me proporcionara estava compatível com a angústia e perdas do período pandêmico vivido. Era quase um espelho literário da minha própria deriva emocional. Não li o livro, foi para a estante. Mas, incondicionalmente, com perdas e sofrimentos, a vida me fez passar pela pandemia. E então o livro ficou, ali, perdido entre as prateleiras.
Esses livros não terminados, tal qual as emoções e sentimentos transformados em tralhas numa gaveta, seguem ali aguardando um encontro com seus donos e nós aqui, adiando esses encontros. Deixando para depois. Para quando tivermos tempo. Para quando estivermos melhor. Mas esse “melhor” nunca chega. Então o livro fica. E a gente, também. Essa relação com os livros é feita de ritmos e recusas. A gente lê quando pode, quando aguenta, quando precisa. E às vezes não lê, e tudo bem. Mas o que nos inquieta são justamente aqueles que sabemos que precisamos ler, mas não conseguimos. Porque eles tocam algo que ainda não cicatrizou. Porque eles nos obrigam a nomear o que ainda está mudo. Nos obriga a “dar uma geral na gaveta”. E então adiamos. E os livros esperam. São pacientes. Não cobram. Mas nós os esquecemos.
É curioso como associamos sucesso à conclusão. Como se só fizesse sentido aquilo que termina. Mas há leituras, sentimentos e momentos, que não se finalizam porque continuam acontecendo dentro da gente. Mesmo que o marcador nunca passe da página 67. Mesmo que a gente nunca abra a gaveta e tire aquela carta trocada com um afeto. Ela permanece presente, como uma frase que ecoa no corredor da memória. Como um cheiro que ficou na roupa depois de um abraço que não se repetiu. Talvez por isso, no fundo, os livros que não lemos sejam os mais honestos com a nossa história. Eles sabem de nós o que nem sempre admitimos: que também estamos inacabados.
Uma leitora, do artigo publicado na última quinzena, me escreveu dizendo:
— Professor, estamos doentes e precisamos mudar o estilo de vida e olhar para dentro.
E eu, muito sem jeito, respondi:
Não estamos doentes, estamos bagunçados. E há uma diferença fundamental, porque a bagunça pressupõe vida, movimento, ainda que desordenado. Há desejo, mesmo que perdido entre as tralhas e a doença, bom, é o fim nela mesma – é somatória de causa, efeito e fim.
Para a doença, busca-se uma cura, mas para a bagunça, podemos começar por aceitar que não temos todas as respostas e parar de fingir que dar conta de tudo é um sinal de saúde e prosperidade. Mujica, em sua vida, nos ensinou sobre o tempo – o trabalho, o romance, a luta na militância, as discussões, tudo é ligado diretamente às horas de vida que dedicamos àquilo. Será que vale a pena? Não sei, avalie por sua conta.
Talvez seja o momento de desorganizar com cuidado. De tirar da gaveta uma emoção por vez, sem pressa. De abrir um livro só por abrir. De conversar sem resolver. De sentir sem concluir. Porque a bagunça não é o problema, o problema é o medo de encará-la. E a coragem de abrir espaço para essa desordem pode ser, paradoxalmente, o início de uma forma mais sincera de existir. O tempo não apaga tudo. Ele filtra. O que permanece, permanece por um motivo, ainda que a gente não saiba nomear. Por isso me recuso a me desfazer dos meus livros não lidos. Eles me esperam com uma paciência que o mundo não tem. E eu espero por mim mesmo, até o dia em que poderei abri-los sem medo. É assim, ninguém vive com tudo no lugar. E talvez nem devesse. O que somos está menos no que mostramos e mais no que guardamos sem saber direito por quê. Nas cartas que não rasgamos e nos livros que não terminamos de ler. Nas dores que não esquecemos, mas aprendemos a dobrar bem. E no fim do dia, com ou sem respostas, seguimos. Porque a vida também é isso: uma gaveta fechada, um livro em espera, e a coragem de continuar mesmo sem entender tudo.
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Prof. Everton,
Obrigado pelo texto! Eu que guardo inúmeras gavetas fechadas e livros pela metade entendo bem suas palavras.
Abraço!