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Veríssimo e a gestão de expectativas — a medida do viver é aprender a calibrar

Querido e gentil leitor.


Tomo emprestada a pena ferina de Lady Whistledown, personagem central da saga Os Bridgerton (Arqueiro/Netflix), para inaugurar este texto. Afinal, poucas histórias retratam com tanta intensidade o jogo social de ansiedades e expectativas quanto o universo aristocrático que ela narra. Faço isso, não por simples capricho estilístico, mas porque essa narrativa é, em si, uma coreografia do que buscarei dissecar ao longo deste artigo.


Eu sei e você também sabe, que a vida é uma fábrica de expectativas. Desde o nascer, somos lançados no jogo de prever, desejar, imaginar. É o que nos move e o que nos paralisa. Dos pais que anseiam que os filhos sejam médicos, advogados e engenheiros, à criança que sonha em ser astronauta ou princesa; do jovem que deposita no vestibular a promessa de futuro ao trabalhador que espera a estabilidade de um concurso; da mulher que é empurrada ao altar como sinônimo de realização ao idoso que aguarda a visita dos filhos no domingo. Cada fase da vida é atravessada por expectativas — algumas impostas, outras inventadas, quase todas desmedidas.


E, no entanto, essa engrenagem não se move sem riscos. Para cada expectativa frustrada, nasce a ferida da decepção. Para cada expectativa satisfeita, surge uma nova demanda, como se o desejo fosse uma máquina de produção infinita. É nesse ciclo que nos descobrimos frágeis: não pela ausência de futuro, mas pela sua superabundância.


Não é de hoje que os escritores, filósofos e psicólogos nos alertam: expectativa demais é receita para a decepção; expectativa de menos é anestesia da alma. Mas como viver sem elas? Como seguir sem projetar o próximo passo, sem inventar um futuro plausível? A verdade incômoda é que não há neutralidade — viver é esperar. O que resta, portanto, não é negar a expectativa, mas aprender a calibrá-la.


Luis Fernando Veríssimo, que nos deixou nos últimos dias, trouxe em sua crônica “Versões de mim”, um espelho partido: cada fragmento é uma possibilidade da vida que não vivemos. O cenário é um bar chamado “Imaginário”, povoado por versões alternativas do próprio narrador — um eu que virou goleiro, outro que fracassou como especialista em propaganda, um terceiro que morreu jovem em um acidente aéreo. Todos se encontram, todos se queixam, todos carregam o peso das escolhas que poderiam ter sido.


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A ironia do texto é cruel e libertadora ao mesmo tempo. Cruel, porque nos mostra que, qualquer que seja o caminho, sempre haverá arrependimento. Libertadora, porque insinua que a vida não se sustenta em um jogo de possibilidades infinitas, mas no que de fato se concretiza. “Creio que a vida não é feita das decisões que você não toma, ou das atitudes que você não teve, mas sim, daquilo que foi feito”, escreveu Veríssimo. Uma frase que ecoa a velha máxima de Fernando Pessoa: “Navegar é preciso. Viver não é preciso.”


Não é por acaso que a expectativa aparece nesse cenário literário como sombra. O que são aquelas versões do eu senão expectativas que ficaram suspensas? Fantasmas do que se desejou ou temeu. De certa forma, o bar “Imaginário” é o espaço onde expectativa e frustração bebem juntas, brindando às vidas que não vingaram. A filosofia sempre desconfiou desse terreno movediço. Kierkegaard, em “O conceito de angústia” (Ed. Vozes, 2013, p. 184), já advertia que a possibilidade é, ao mesmo tempo, leveza e peso: a possibilidade é o maior de todos os poderes. Mas também é veneno, o excesso de possibilidades pode paralisar. Veríssimo traduziu essa tensão existencial numa cena de humor triste, em que cada escolha abre uma bifurcação infinita, e todas as bifurcações parecem desembocar em algum tipo de desencanto.


Tem um ditado, querida leitora e querido leitor, que você certamente já ouviu por aí, talvez até tenha proferido: — a grama do vizinho é sempre mais verde que a nossa. Lá em “Versões de mim”, nenhuma das alternativas parece satisfatória. Nem a glória do futebol europeu, interrompida tragicamente, nem o concurso público, que produz versões cada vez mais desiludidas do narrador. Há sempre um sinal de queda, de limite. A expectativa, quando comparada ao real, tende a se revelar inflada, desmedida.


Essa constatação nos leva a um primeiro paradoxo: não é a expectativa em si que nos destrói, mas a incapacidade de calibrá-la. O narrador se dá conta de que quem parecia em melhor forma era ele mesmo, o “eu real”, sentado diante do balcão, com todas as limitações e todas as imperfeições. A metáfora é clara: viver é escolher, e escolher é perder versões possíveis de si. Há uma ressonância aqui com Milan Kundera, em “A insustentável leveza do ser” (Ed. Companhia de Bolso, 2008, 302 p.), quando escreveu que a vida é única e não há ensaio geral. Para cada decisão tomada, milhões de outras deixam de existir. O que resta é o peso da irreversibilidade, e com ele a necessidade de conviver com expectativas não realizadas.


Todavia... Esperar é tão vital quanto respirar. E essa não é conclusão apenas minha, Daniela Beskow, em seu ensaio “A importância da expectativa”, lembra que a expectativa não é apenas fruto da imaginação, mas resposta a padrões da vida: o ciclo do sol, o tempo das águas, o ritmo do corpo. Desde o início da civilização, esperar a chuva e a colheita, foi condição de sobrevivência. Em outras palavras, não há vida sem expectativa.


Beskow nos leva a refletir sobre um ponto crucial: não é a expectativa que nos adoece, é a incapacidade de lidar com a frustração. Se o alimento não veio, se a colheita falhou, é preciso recalibrar, tentar de novo, inventar outro caminho. A vida, diz ela, é sistêmica: a expectativa é fio vital, mas a frustração é o nó inevitável. Se nos transportarmos para as relações humanas, o terreno fica ainda mais instável. O que esperamos do outro raramente coincide com o que ele pode ou deseja oferecer. O filósofo dinamarquês Kierkegaard chamava esse descompasso de “angústia da possibilidade”.


Não é por acaso que Robert Rosenthal e Lenore Jacobson mostraram, na década de 60, como as expectativas moldam a realidade. Professores convencidos de que certos alunos eram “promissores” os trataram de forma mais atenta, encorajadora — e os alunos, de fato, tiveram melhor desempenho. Chamaram isso de Efeito Pigmaleão. A expectativa, nesse caso, não é apenas projeção; é força performativa, cria o que diz esperar. O esperançar de Paulo Freire também caberia neste contexto, mas tratarei disso em artigo futuro.


Contudo, esse mesmo mecanismo pode ser devastador. Se esperamos fracasso, se rotulamos alguém como incapaz e o tratamos como tal, colhemos o fracasso que nós mesmos semeamos. É a expectativa transformada em arma, que não gera esperança, mas resignação. O que fazer, professor Everton, esperar, não esperar? Você me perguntaria em uma conversa numa mesa de bar ou numa roda de conversa no parque. E eu diria que estou buscando entender que a vida está entre um espaço de experiência (o passado que carregamos), um de aventuras (o presente em que arriscamos cada decisão) e um horizonte de expectativa (o futuro que almejamos e projetamos). O tempo histórico nasce da tensão entre esses espaços. Quanto mais distante o horizonte, maior a sensação de progresso e na mesma medida, maior a angústia daquilo que não se concretiza.


Infelizmente o espaço é curto para nos desdobrarmos pelas experiências pessoais, concepções sociológicas, históricas e psicológicas. Mas, pelas minhas leituras, ouso aqui dizer que em todas essas perspectivas, um ponto em comum predomina: não existe neutralidade emocional diante da expectativa. Se esperamos demais, sofremos pelo excesso. Se esperamos de menos, caímos na apatia de viver sem sentir, sem se importar. Se esperamos errado, cultivamos frustração. A gestão da expectativa é, portanto, também gestão das emoções.


Na vida, precisamos aprender a lidar e respeitar os “nãos” que recebemos. Um amigo que perde um aniversário, a dor da morte de uma pessoa querida, o marido que se esquece diariamente de lavar a louça, a promoção que nunca chega, o filho que não corresponde ao plano de vida sonhado, o corpo que já não responde como antes. Esses “nãos” são lembretes de que a realidade não se curva integralmente às nossas expectativas. Amadurecer emocionalmente também inclui aprender a conviver com as fissuras entre o que desejamos e o que a vida nos entrega. E tudo bem!


No fim, expectativa é uma espécie de fio invisível que costura a existência. Quando estica demais, arrebenta em frustração; quando afrouxa, deixa-nos sem direção. O segredo talvez não esteja em cortar o fio, mas em aprender a tecer com ele: ponto por ponto, laço por laço, sustentando a trama da vida.


E aqui volto a Veríssimo. Não é que devamos abolir as expectativas, e sim aceitá-las como companheiras de mesa: tagarelas, exageradas, muitas vezes inconvenientes, mas impossíveis de excluir da conversa. A vida não é manual de instruções, tampouco ensaio geral. É improviso, é tropeço, é gargalhada depois da queda. E se calibrar expectativas é tarefa interminável, talvez seja justamente isso que nos humaniza.


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